O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem sustentado que não houve “ilegalidade” na tentativa de entrar no País com joias de valor milionário trazidas da Arábia Saudita sem o pagamento do imposto devido. Especialistas consultados pelo Estadão ponderam que os fatos ainda precisam ser elucidados por meio de investigação, mas listaram crimes descritos no Código Penal que podem enquadrar a conduta do ex-chefe do Executivo e de membros de seu governo.
Um segundo pacote de bens valiosos passou despercebido pelos servidores da alfândega e está no acervo pessoal do ex-presidente, conforme ele mesmo admitiu.
Segundo especialistas, uma eventual investigação deve buscar entender se e de que forma Bolsonaro usou a estrutura do Estado para recuperar as joias; além disso, se a intenção do ex-presidente era de fato manter os bens consigo. O criminalista André Lozano explica a importância de se elucidar a motivação do presente. “Tem de ver se a Arábia Saudita deu esses bens na qualidade de governo ou de forma particular. Se foi de forma particular, tem de ver qual a motivação, porque ninguém recebe um presente de R$ 16 milhões. Eventualmente, se tiver algum interesse escuso da Arábia Saudita para dar esses bens, pode se pensar na possibilidade de corrupção passiva. Mas tudo ainda é embrionário, são conjecturas”, diz.
Como mostrou o Estadão, os auditores da Receita ofereceram a alternativa de declarar os bens como patrimônio do Estado brasileiro, o que livraria do pagamento de imposto, mas a comitiva brasileira declinou. “Isso tudo vai lá para a primeira-dama”, disse, na ocasião, o ex-ministro Bento Albuquerque.
Lozano também aponta a possibilidade, mediante investigação, do enquadramento das condutas nos crimes de peculato (quando um cargo público é usado para tomar posse de dinheiro ou bens móveis), advocacia administrativa (quando um funcionário público usa o cargo para patrocinar interesse privado) e descaminho (o que popularmente é conhecido como “contrabando”).
Veja artigos do Código Penal que podem descrever a conduta do presidente e do ministro:
Crime: Art. 312 (peculato): Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
Situação: Bolsonaro tentou reaver as joias, mas não indicou claramente se elas iriam para o acervo público da União. Ao ouvir essa opção no aeroporto, Bento Albuquerque declinou. Um segundo pacote de joias está no acervo pessoal do ex-presidente.
Crime: Art. 321 (advocacia administrativa): Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário.
Situação: Bento Albuquerque, Itamaraty e o ex-chefe da Receita Federal, Júlio Cesar Vieira, encaminham ofícios pedindo a liberação dos bens. Se ficar comprovado que as joias eram para o acervo privado de Bolsonaro, pode ficar configurada advocacia administrativa.
Crime: Art. 334 (descaminho): Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.
Situação: Servidores do Ministério de Minas e Energia tentaram passar pela alfândega brasileira sem declarar o conteúdo dos pacotes – joias que valem milhões de reais – e, consequentemente, sem pagar o imposto devido.
A especialista em Direito Penal Marina Pinhão Coelho afirma Bolsonaro deveria ter documentado o recebimento das joias à União, já que estava na condição de chefe de Estado quando as recebeu. “São bens que deveriam ser devidamente declarados ao País e tutelados como patrimônio do Estado brasileiro”. No ato de apreensão, foi dada a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas a comitiva liderada pelo então ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e poderiam ser liberadas.
“Os tipos penais concretos só conseguimos apontar a partir de análises mais detidas dos documentos do caso, mas pode haver crimes tributários, crimes de falsidade e crimes praticados por funcionários públicos contra o patrimônio comum do Estado”, afirmou Marina Pinhão Coelho.
A criminalista Marina Brecht afirma que a conduta do presidente também poderia se enquadrar, em tese, na lei de abuso de autoridade. O texto descreve, em seu 33º artigo, o ato de “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”. Bolsonaro teria feito isso quando impôs a ministros e ao secretário da Receita Federal que pressionassem pela liberação das joias.
Segundo Marina, a investigação precisa desvendar se há vínculo de Bolsonaro com a tentativa de entrada ilegal com as joias. Após o caso ser revelado pelo Estadão, o ex-presidente passou a dizer que “não pediu, nem recebeu” os presentes do regime saudita. “É preciso demonstrar se existia algum tipo de conluio, plano comum entre todos eles (o ex-presidente, o ministro Bento Albuquerque e os assessores). Existem sinais que indicam esse vínculo, que vão precisar ser melhor esclarecidos durante a investigação”, afirma.
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