PT quer extirpar GLO das Forças Armadas 35 anos após derrota na Constituinte

Relator da Assembleia Nacional Constituinte, o ex-deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM) citou o filósofo francês Montesquieu (1689-1755) para acatar a principal demanda do então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, em setembro de 1987.

Com as discussões no Congresso sobre a nova Constituição do país, o general escalou oito militares para trabalharem como assessores parlamentares. Um de seus principais objetivos era evitar a retirada, no novo texto constitucional, da atribuição das Forças Armadas de serem garantidoras da lei e da ordem.

Para o relator, a possibilidade de qualquer Poder acionar as Forças Armadas para garantir a ordem respeitava a “tradicional tripartição de que fala Montesquieu”.

A ideia do texto era manter o poder dos militares para atuar em ações de segurança interna quando as polícias são insuficientes para a tarefa. Não havia consenso sobre o tema, que virou uma batalha na Assembleia Constituinte.

“Na época, o assunto que tinha mais visibilidade era tirar as Forças Armadas da segurança pública. Não se dava tanta visibilidade para isso de ‘papel moderador’, que foi criado depois. A gente questionava o que era ordem, o que era a lei, porque tinha uma certa subjetividade nisso”, disse à reportagem o ex-deputado e constituinte José Genoino (PT), principal articulador contra o texto do artigo 142.

“Era a militarização do país, da segurança pública e do Estado”, completa.

Os relatórios da Constituinte mudaram três vezes no plenário até se confirmar o artigo 142 da Constituição Federal, que descreve os deveres das Forças Armadas —entre eles, o de destinar-se “à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

O levantamento foi feito pela reportagem com base na publicação “A Gênese do Texto da Constituição de 1988”, de João Alberto Lima, Edilenice Passos e João Rafael Nicola.

O debate que existia na redemocratização voltou a ser tema no Congresso Nacional em 2023.

Parlamentares da base do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendem que as Forças Armadas não devem participar de ações de segurança pública —e o caminho, portanto, seria rever o papel constitucional dos militares.

Além do mais, o artigo 142 da Constituição passou a ser evocado por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como a suposta base legal para uma intervenção militar no país —embora ele não permita essa hipótese.

O deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) resolveu assumir a liderança dos esforços contra a atual redação do artigo 142. Ele redigiu uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que busca retirar a possibilidade de as Forças Armadas participarem de operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).

“A GLO é utilizada pelos militares para fazer uma intervenção interna. Cerca de 40% delas foram para combater a criminalidade, e as Forças Armadas não estão preparadas para isso”, avalia Zarattini.

Para ele, as ações de segurança pública devem ser realizadas pela Força Nacional nos casos em que as polícias militares são insuficientes. “No meu modo de ver, essa [foi uma] imposição dos militares na Constituição Brasileira, do [ex-ministro do Exército] Leônidas”, completa.

Políticos e pesquisadores ouvidos pela repçortagem lembram que, na discussão da Constituinte, a relação entre o Congresso e as Forças Armadas estava contaminada pela ditadura militar.

Eles contam que as Forças tinham uma estrutura montada na Assembleia: assessores parlamentares fardados atuavam nas conversas com constituintes e repassavam as informações para o general Leônidas.

Como herança dessa época, o Ministério da Defesa ainda investe fortemente na assessoria parlamentar —a pasta é uma das poucas na Esplanada que mantêm sala fixa no Congresso.

Os militares usam uma sala de 27 m² no 27º andar da torre do Senado. Seis assessores sem farda costumam circular pelos gabinetes de deputados e senadores para pedir emendas aos projetos da Defesa e sentir o clima para eventuais derrotas nas Casas.

Para o diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador e atual diretor do Centro de Defesa e Segurança Nacional, a discussão sobre reformulação das Forças Armadas é importante não pelo conteúdo, mas pelo que representa o enquadramento legislativo sobre os militares.

“É uma coisa simbólica […], uma oportunidade de reforçar o controle civil. Mas isso não pode ser partidarizado, tem que ser uma ação do Congresso, da sociedade civil, não do PT”, disse.

O ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo classifica como “revanchismo” uma ofensiva do PT para mudar o papel das Forças Armadas na Constituição.

“As Forças Armadas usaram a GLO mais de 160 vezes, sempre por iniciativa dos Poderes —nunca pela nossa vontade”, conta. “Quando a polícia do Ceará ou da Bahia entra em greve, quem entra [em ação]? Somos nós. É revanchismo, besteira mexer nisso.”

Fontes da alta cúpula do Exército afirmaram à reportagem, sob reserva, que a caserna não concorda com o fim das operações de Garantia da Lei e da Ordem. Eles veem a PEC como uma ação isolada do PT, sem grande apoio no Congresso.

Mesmo assim, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, deve se encontrar com o deputado Zarattini na próxima semana para discutir a proposta.

No Exército, generais afirmam que há disposição para discutir alterações nas regras sobre militares assumirem cargos civis. Uma proposta, estudada em conjunto com o Ministério da Defesa, é enviar direto para reserva o militar que decide assumir função em outros Poderes.

Pelas regras atuais, o militar pode passar dois anos em cargo de indicação política antes de deixar a ativa.

A professora Adriana Marques, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), apelidou a proposta em gestação no Ministério da Defesa como “PEC light”.

“Nenhuma instituição se autorreforma por vontade própria. A gente não pode ter muitas expectativa de proposta de autorreforma, são eles propondo algo que é óbvio, que militar da ativa não deve participar de cargos governamentais.”

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