Advogados eleitorais avaliam que sentença que abate Bolsonaro mostra caminho contra abusos
Especialistas em direito eleitoral avaliam que a decisão que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível estabelece um novo paradigma ao fortalecer a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral sobre os ataques ao sistema eletrônico de votação. Também destacam como a Lei da Ficha Limpa teve ‘papel fundamental’ no julgamento concluído nesta sexta, 30.
Há cerca de um ano e meio, o ministro Alexandre de Moraes já alertava sobre a eventual inelegibilidade de Jair Bolsonaro caso este mantivesse os ataques às urnas eletrônicas. À época, o ministro advertia que a Justiça Eleitoral era ‘cega, mas não tola’ e quem espalhasse desinformação em 2022 ‘iria para a cadeia e teria o registro cassado’.
A declaração foi relembrada na tarde desta sexta, 30, durante o julgamento que alijou Bolsonaro da corrida eleitoral até 2030. Alexandre de Moraes disse que a decisão do TSE sobre o ex-presidente reafirma ‘parâmetros da corte’ sobre a disseminação de fake news sobre o sistema eleitoral. É o mesmo que avaliam advogados eleitoralistas consultados pelo Estadão.
Além disso, os especialistas explicam as estratégias que o ex-chefe do Executivo pode traçar para tentar reverter a inelegibilidade, assim como as implicações que o entendimento do TSE tem sobre outras esferas, como a administrativa, no Tribunal de Contas da União.
Nova premissa
A advogada eleitoralista Izabelle Paes considera que a decisão dada pelo TSE nesta sexta ‘firma nova premissa’ ao fazer um ‘encadeamento muito conciso entre práticas de abuso de mandatários, com repercussões nos meios de comunicação e na internet, com grande alcance para atingir determinados segmentos que vão aderir às ideias propagadas’.
“A conclusão é de que desde quando começou o debate sobre desinformação e isso está bem marcado no voto do relator, trazendo toda a situação de como essa cadeia de desinformação veio evoluindo desde a eleição americana em 2016 e chegou aqui em 2018, e também com aquele primeiro processo de Bolsonaro que acabou não tendo comprovação de autoria, hoje, e penso que essa é a premissa nova, o operador do direito tem mais claro quais os caminhos a perseguir tanto para coibir esse tipo de abuso”, frisou.
A menção da advogada ‘primeiro processo de Bolsonaro’ está ligada ao julgamento em que o TSE, em 2021, decidiu rejeitar ações que pediam a cassação dos mandatos do então presidente Jair Bolsonaro e vice Hamilton Mourão em razão de disparos em massa de notícias falsas e ataques a adversários, por meio do WhatsApp, durante as eleições de 2018.
No entanto, na época, o colegiado fixou a tese de que ‘o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas visando promover disparos em massa contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato pode configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social’.
Foi justamente tal julgamento o evocado por Alexandre de Moraes ao votar pela inelegibilidade de Bolsonaro nesta sexta. À época, o ministro afirmou que a tese estabelecida pela Corte estabelecia um ‘recado muito claro’ para candidatos de 20222: “Se houver repetição do que foi feito em 2018 o registro será cassado e as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as instituições e a democracia no Brasil”.
Lei da Ficha Limpa
O advogado Rodrigo Meyer Bornholdt considera que a Lei da Ficha Limpa teve papel fundamental na decisão do TSE. Ele explica que, até 2010, a lei exigia que, para a configuração de abuso de poder político, seria necessário que a conduta sob suspeita ‘gerasse um desequilíbrio na eleição’.
“Essa era a letra da lei, embora o TSE ali já tivesse uma postura muito rígida. Mas depois de 2010, com a Lei da Ficha Limpa, o quadro muda. A exigência passa a ser apenas de que o abuso de poder político seja considerado grave. E, portanto, não existe mais a necessidade de avaliação de se isso desequilibrava ou não o resultado da eleição”, explica.
De outro lado, assim como destacado pelos ministros da Corte eleitoral, Bornholdt considera que ‘não há dúvidas’ sobre a conduta do ex-presidente.
“Uso das dependências do Planalto, uso da TV oficial, a tentativa de criação de um fato de repercussão internacional, o objetivo de galvanizar a própria base eleitoral com as denúncias sobre fraudes das urnas eletrônicas e possíveis fraudes. Mesmo que não houvesse as fakes news, o abuso de poder existiu. Era o presidente da República, usando toda a sua institucionalidade, todo o seu poder, para botar em dúvida a questão das eleições, visando a objetivos políticos”, diz.
Recursos
O advogado eleitoralista Cleydson Coimbra explica que Bolsonaro pode recorrer da decisão que o declarou inelegível tanto no TSE como no Supremo Tribunal Federal. Na Corte eleitoral ele pode entrar com embargos de declaração, sob alegação de ‘obscuridades ou contradições no julgamento’. Já no Supremo, o ex-chefe do Executivo pode impetrar um recurso extraordinário, argumentando eventuais ofensas à Constituição Federal.
O constitucionalista Aílton Soares de Oliveira, avalia que há grandes chances de a defesa de Bolsonaro recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral considerando a ‘complexidade do julgamento e extensão do voto’ do relator. Já quanto ao recurso ao Supremo, o advogado aponta que a jurisprudência da Corte máxima ‘não tem aceito recursos que discutam julgamento do TSE por ser Corte Especializada’. Em sua avaliação, o Supremo tem competência para analisar questões constitucionais mesmo que advindas do Tribunal Superior Eleitoral.
Implicações
De acordo com o advogado Lenio Streck, ‘qualquer uso eleitoral de bens públicos pode configurar infração administrativa e improbidade administrativa’, o que indica possíveis complicações de Bolsonaro diante do Tribunal de Contas da União e do Ministério Público.
O TSE vai encaminhar a decisão sobre Bolsonaro para a Procuradoria-Geral Eleitoral – ‘para análise de eventuais providências na esfera penal’ – e ao TCU – em razão de ‘comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação de evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira’.
Especialista em Direito Eleitoral, Daniel Califre explica que o emprego de dinheiro público em evento com finalidade eleitoreira é tido como conduta que gera dano à administração pública federal. Nessa linha, o advogado explica que a Corte de Contas, órgão de controle externo do governo federal, deve abrir uma tomada de contas especial para avaliar o caso, ‘respeitando o direito de defesa’ de Bolsonaro.
“Se o TCU concluir pela configuração de dano ao erário, poderá condenar Jair Bolsonaro a ressarcir os cofres públicos pelos valores utilizados para custear a reunião, incluindo os recursos físicos, como painel de LED, sonorização, cenografia e gerador, e os recursos humanos, consistentes na remuneração da equipe que trabalhou na ocasião. Caberá ao Tribunal, ainda, avaliar a possibilidade de ressarcimento relativo à utilização da própria estrutura do Palácio da Alvorada”, explica.
O advogado administrativista explica ainda que, após a apuração sobre eventual dano ao erário, o TCU pode impor ao responsável pelo gasto irregular, no caso Bolsonaro, não só a obrigação de ressarcimento, mas também sanções, como multa e inabilitação de cinco a oito anos, impedindo o exercício de cargo em comissão ou função de confiança.