Novo Bolsa Família, velhos problemas

O presidente Lula da Silva assinou na quinta-feira passada a medida provisória (MP) que recriou o Bolsa Família, agora sob novos parâmetros. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, 20 milhões de famílias serão atendidas pelo programa remodelado, o que corresponde a cerca de 55 milhões de pessoas. Além do benefício mínimo, no valor de R$ 600, foram criados dois benefícios complementares, promessas de Lula durante a campanha eleitoral: um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos de idade na composição familiar; e o benefício “Renda e Cidadania”, de R$ 50, que será pago a cada membro da família com idade entre 7 e 18 anos incompletos e às gestantes.

A um só tempo, a recriação do Bolsa Família representa acertos do governo Lula e uma vergonha para a sociedade brasileira. Comecemos pelos pontos positivos.

Em primeiro lugar, o governo agiu bem ao retomar as contrapartidas sanitárias e educacionais que sempre estiveram atreladas à concessão dos benefícios. Para receber os recursos do novo Bolsa Família, os beneficiários voltarão a ter de provar que suas crianças estão matriculadas na escola e estão em dia com a vacinação contra doenças infectocontagiosas. As gestantes terão de realizar o acompanhamento pré-natal. Essas exigências haviam sido eliminadas por Jair Bolsonaro, quando da criação do Auxílio Brasil, porque o ex-presidente jamais esteve interessado em melhorar as condições de vida dos desvalidos, mas sim em criar um programa descarado de compra de votos.

O presidente Lula também acertou ao exigir do Ministério do Desenvolvimento Social o aprimoramento do Cadastro Único (CadÚnico), base de dados cuja acurácia é fundamental para o direcionamento dos recursos do Bolsa Família às pessoas certas. Durante a cerimônia de assinatura da MP, no Palácio do Planalto, Lula afirmou que “esse programa só dará certo se o Cadastro Único for eficaz e garantir que o benefício chegue a quem precisa”. Lula pediu a ajuda “de toda a sociedade” – especialmente da imprensa – para “fiscalizar” a concessão dos benefícios. A imprensa, até por dever de ofício, não se furtará a exercer seu papel, mas não custa lembrar que é do governo o dever de zelar pela higidez do CadÚnico.

Ao estabelecer novos parâmetros para pagamento dos benefícios e reforçar a necessidade de aprimorar o CadÚnico – segundo estimativas do próprio governo, há 1,5 milhão de beneficiários em situação irregular –, Lula tende a eliminar as distorções que, nos últimos quatro anos, tornaram o programa de transferência de renda um caos, um sorvedouro de recursos públicos mal direcionados. Decerto é possível fazer mais e melhor, quiçá gastando menos, apenas depurando o quadro de beneficiários do Bolsa Família, com mais foco e inteligência.

Dito isso, é uma vergonha para a sociedade brasileira o fato de que, passadas duas décadas desde a criação do Bolsa Família, ainda haja tantos milhões de cidadãos que dependem do benefício estatal para sobreviver. Não há evidência mais cabal do absoluto fracasso de sucessivos governos, de diferentes orientações político-ideológicas, em acabar com a miséria no País. Por óbvio, não se trata de supor, ingenuamente, que no espaço de 20 anos fossem superadas as causas que constituíram a desigualdade como um traço distintivo da formação nacional. O que espanta é o Bolsa Família ainda ter a dimensão e a importância que tem em 2023.

Este jornal não é contra programas de transferência de renda, menos ainda contra o Bolsa Família, política pública que se provou bem-sucedida por meio de evidências científicas e análises de especialistas insuspeitos. O Brasil é um país que ainda não pode prescindir de um bom programa de transferência de renda. Muitos cidadãos têm essa consciência e aceitam arcar com seus custos.

O problema, portanto, não é o Bolsa Família em si, mas sua perpetuação, até como ativo eleitoral. Um estadista estaria ocupado em criar as condições que permitam que cada vez mais brasileiros resgatem sua cidadania e cada vez menos dependam do Estado para viver.